Um desses passageiros, um espanhol, Serván de Cerezuela, carregava sob o braço uma pasta oficial, cujo conteúdo logo depois causaria certa sensação entre os colonos. Tratava-se de documento real, assinado e selado há quase um ano antes, um que desencadearia sobre os habitantes uma campanha de trezentos anos de intimidação e de contínua apreensão. A autoridade do temido “Santo Ofício”, melhor conhecida como a Inquisição Espanhola, estendera-se então ao Peru.
Não foi sem razão que os habitantes europeus do Peru encararam este acontecimento com grande inquietação. Não haviam testemunhado as operações do “Santo Ofício” em suas terras natais? Todas as recordações e todos os rumores de torturas horríveis e mutiladoras, e de mortes dolorosas sem dúvida encheram-lhes a mente.
A Inquisição
Essa terrível arma de temor, a Inquisição, foi primeiro forjada em princípios do século treze. Sua finalidade: buscar e punir os hereges e descrentes. Começou a tomar forma definida quando, em 1232, o Papa Gregório IX designou juízes permanentes, que vieram a ser conhecidos mais tarde como “inquisidores”. Todos que viviam nas chamadas terras “cristãs” deviam ser coagidos à lealdade à única Igreja. Não se devia permitir nenhuma discordância, nenhum exercício de seu próprio critério, nenhuma interrogação das doutrinas da Igreja.
Os representantes da Igreja insistiam que as suas investigações, incluindo a tortura, eram feitas por amor às vítimas. E quanto à responsabilidade de queimar incontáveis pessoas na estaca, declaravam que tais execuções eram realizadas, não pela Igreja, mas pela autoridade secular.
Mas, quanto à responsabilidade real por uma multidão de mortes horríveis, podemos melhor determinar o assunto por recorrermos à Catholic Encyclopedia, em que aparece a seguinte admissão: “Dificilmente se pode duvidar da predominante natureza eclesiástica do [“Santo Ofício”]. . . . As autoridades civis eram, portanto, ordenadas pelos papas, sob pena de excomunhão, a executar as sentenças legais que condenavam os hereges impenitentes à estaca.” (Vol. 8, págs. 34, 37) Mais tarde, a própria tortura, autorizada em 1252 pelo Papa Inocêncio IV, foi, por razões secretas, confiada aos próprios inquisidores.
É de gelar o sangue saber até que ponto esses inquisidores supostamente cristãos chegaram a fim de extrair confissões ou evidência incriminatória de suas vítimas. Com freqüência eram monges escolhidos das fileiras da Ordem Dominicana, homens cuja vida desnatural e sem família e cujo fanatismo os endureceram ao ponto de não se condoerem do sofrimento e não hesitarem em infligir as mais excruciantes torturas.
Lima sob o Flagelo
Não é de admirar, então, que os habitantes de Lima ficassem consternados. Nenhum segredo seria agora sagrado. Toda declaração da pessoa poderia ser base de acusação. A pessoa poderia ser denunciada pela própria esposa, pelo próprio marido, filhos ou pais. Deveras, esse era o objetivo do “Edito de Acusação”, documento lido cada terceiro domingo da Quaresma depois da “missa e sermão solenes”. Os seguintes extratos, traduzidos de Annals of the Lima Inquisition falam por si mesmos:
“Nós, os Inquisidores contra as iniqüidades e a apostasia heréticas nos reinos do Peru, a todos os vizinhos e habitantes da cidade dos Reis, de qualquer estado, condição, preeminência e dignidade que sejam, cumprimentos em Cristo.
“Em virtude de vos informar que, para o maior progresso da fé, é apropriado separar a má semente da boa, e evitar todo desserviço ao Nosso Senhor, ordenamos que cada um de vós e todos vós que, se vierdes a saber, ou ver ou ouvir falar, de qualquer pessoa viva, presente, ausente ou falecida, que tenha dito ou crido em quaisquer palavras ou opiniões heréticas, suspeitosas, errôneas, imprudentes, que soem mal, escandalosas ou blasfemas, deveis contar ou manifestar isso a nós.
“Ordenamo-vos que denuncieis diante de nós, se souberdes, ou ouvirdes falar, de quaisquer pessoas que tenham guardado os sábados em observância da lei de Moisés. . . . ou tenham afirmado que Jesus Cristo não é Deus, ou que não nasceu de Nossa Senhora, virgem antes do nascimento, no nascimento, e depois do nascimento. . . . ou que o Papa ou os ministros do altar não tenham o poder de absolver pecados . . . ou que não existe purgatório e que nas igrejas não deve haver imagens de santos, ou que não há necessidade de orar pelos mortos. . . .
“Ordenamo-vos que nos notifiqueis se ouvirdes falar, ou souberdes de qualquer pessoa que tenha Bíblias em [espanhol]. . . .
“Portanto, pelo teor desta admoestação, exortamos e exigimos, sob pena de máxima excomunhão, . . . ordenamos que cada um e todo aquele dentre os que souberem ou que tenha feito qualquer das coisas declaradas acima, que venha comparecer perante nós, pessoalmente, para contar e manifestar isto dentro de seis dias desde a publicação deste edito, ou desde que este venha a ser de vosso conhecimento.”
Não é evidente como esse Edito foi calculado para lançar a mão de cada homem contra seu irmão, para incentivar as pessoas a espionarem umas às outras?
A “Calesa Verde” (“Carruagem Verde”) podia aparecer a qualquer hora do dia ou da noite nas ruas de Lima. Enviada pelos inquisidores para trazer o acusado, era uma vista que infundia medo mortal nos expectadores. Ao descer lentamente a rua, até mesmo o cidadão comum ficava em pânico. O que havia feito desta vez? Que indiscrição cometera? Quem o delatara? E quando, no meio da noite, ouvia-se uma batida na porta, isto bastava para petrificar seus ocupantes, enchendo-os de puro terror. Poderia ser a Carruagem Verde?
Vítimas de Toda Espécie
Só durante o período colonial relata-se que cinqüenta e nove pessoas foram queimadas na estaca no Peru. As acusações incluíam blasfêmia, bruxaria, bigamia, a posse de uma Bíblia na língua comum do povo, apostasia, professar uma fé não católica. Até mesmo membros de posição elevada dentre o clero não foram isentos. Em 13 de abril de 1578, o Frei Francisco de la Cruz foi queimado na estaca por ensinar que a Igreja era culpada da prática de comprar e vender posições oficiais na Igreja; que se devia abolir a confissão auricular; que os monges e os clérigos se deviam casar, e que as Escrituras Sagradas deviam estar disponíveis na língua comum.
Em 29 de outubro de 1581, o pirata inglês, Capitão John Oxnem e dois membros de sua tripulação foram queimados vivos, não, não por pirataria nos altos mares, mas por serem luteranos. Em 17 de novembro de 1595, o português Juan Fernando de las Heras e três de seus compatriotas foram queimados vivos, tendo sido acusados de “judeus judaizantes”. Observavam o sábado do sétimo dia.
A punição dos condenados era transformada em evento público, realizado com solenidade e pompa. Começando às primeiras horas da manhã, o auto-da-fé durava até tarde da noite. O clero e os cidadãos proeminentes procuravam os lugares da “primeira fileira”, os melhores para contemplar os condenados em seus últimos momentos de agonia no fogo. Os brados e aplausos da turba fanática com freqüência abafavam os gritos das vítimas.
A Sede do “Santo Ofício” em Lima
Poucos visitantes de Lima estão a par da história daquele edifício provido de empena, com seis colunas em estilo greco-romano que dá para a Plaza Bolívar, pouco distante de uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Pode-se entrar dentro de suas quietas dependências e ver a Biblioteca da Câmara dos Deputados; examinar os documentos amarelados assinados por homens proeminentes do início da República, Simón Bolar, José de la Mar e outros; pode-se ficar maravilhado com o teto de mogno intrincadamente esculpido; e contudo não ter a menor suspeita quanto ao uso original do edifício.
Mas, lá em setembro de 1813, os cidadãos de Lima sabiam tudo sobre aquela sede da Inquisição no Peru. Isto se deu quando o Vice-rei Abascal publicou o decreto oficial da corte assinado em Cádis, em 22 de fevereiro do mesmo ano, abolindo o “Santo Ofício”. Dando vazão ao seu ódio e às suas frustrações contidas, invadiram e saquearam o edifício. Desse modo, também, obtiveram sólida evidência dos boatos sobre os horrores que ocorriam ali dentro. Alguns dos itens descobertos foram:
Um crucifixo do tamanho natural com uma cabeça móvel que podia ser manipulada por cordões de detrás de uma cortina de veludo verde. Muitas vítimas crédulas devem ter imaginado que o próprio Cristo interviera contra elas.
Uma mesa, de dois e meio por dois metros, com um grande guincho movido a roda. As vítimas eram colocadas nela e literalmente esticadas até que as juntas e os ligamentos não mais podiam resistir.
Junto a uma parede havia troncos em que se prendiam a cabeça e as mãos enquanto se chibateava a vítima por detrás sem que chegasse a ver seu atormentador. Na parede, chicotes de corda com nós e de fio metálico.
Uma túnica de tortura feita de fio metálico trançado com centenas de pinçasinhas para atormentar a carne ao mais leve movimento muscular de quem a usava.
Outros instrumentos mortíferos incluíam tenazes para usar na língua, roscas para triturar os dedos, e assim por diante.
Pode-se ainda ver o lugar em que os acusados desorientados e aterrorizados se punham diante dos inquisidores; a grossa porta de madeira com seu buraquinho que revelava apenas o olho do acusador anônimo; a parede original da cela de detenção, em que a escrita nítida do homem instruído e os rabiscos quase ilegíveis do homem pobre registram seus clamores de inocência, seus gritos silenciosos por justiça.
in Despertai de 22/7/1971 pp. 20-23
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